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quemcontaumconto

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Similhana


 

 

Ilustração de José Paulo das Neves

Publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais

Edição no. 1.338 - setembro/outubro 2011

 

  

 

 

− Não carece de três pra levar quatro reses, gente; eu levo sozinho.

− Tá dispensando nossa companhia, Zé Maria?

− Não, sô Turíbio, mas ir o senhor, o sô Crispinzinho e eu tangendo essas quatro rezes, não tem cabimento. 

− A gente quer dar um passeio.

− Então, eu fico. Serviço aqui é que não falta.

− Você vai, crioulo. Arreia logo esses cavalos que não temos o dia todo.

Ainda resmungando, Zé Maria arreou o baio do Turíbio, o alazão do Crispinzinho e uma eguinha ruça pra ele. Continuava não entendendo pra quê aquela comitiva pra levar uma vaca velha e três novilhos pro matadouro da Colônia Santa Izabel.

Saíram do Engenho Seco lá pelas 7 horas. O dia estava claro e fresco. Era um bom dia para uma cavalgada. Subiram a cava do capão de aroeira ouvindo a algazarra de um bando de maritacas.

− É uma pena vender a Fonte pro corte – disse Zé Maria entristecido.

− Ela tá velha e tem só duas tetas, Zé Maria, mamite arruinou com as outras duas.

− É, sô Crispinzinho, mas com as duas ela dá vinte litros por dia; bem mais que muita vaca de primeira cria com as quatro tetas.

− Chegou o dia dela. Igual a gente: cada um tem seu dia marcado.

Zé Maria esperava que o seu dia estivesse muito distante. Sua vida nunca foi fácil, mas agora ele tinha um bom motivo para querer viver. Seus olhos se iluminaram quando pensou em Similhana. Seu rosto se abriu num sorriso.

 

 

− Que cara é essa, crioulo, viu passarinho verde?

Zé Maria se alarmou, com medo de que seus pensamentos aparecessem estampados no rosto.

− Vi um bando. Passarinho verde é que não falta por aqui, sô Turíbio.

Eles estavam entrando em Bandeirinha. Zé Mariaficou aliviado quando Turíbio esporeou o cavalo para cercar a Fonte e trazer o gadinho de volta para a estrada.

− Vai tocando o gado, Zé Maria, vamos passar na venda do Toin Ricardo e te alcançamos no Mário Campos.

Sozinho, a lembrança de Similhana dominou Zé Maria completamente: seu rosto moreno de maçãs salientes, as grossas sobrancelhas que quase se encontravam, seu largo sorriso, os dentes branquinhos e perfeitos, seus cabelos longos e lustrosos de tão negros formaram uma imagem tão nítida diante de seus olhos que ele estendeu as mãos tentando tocá-la. A lembrança do seu cheiro o transportou e ele já não via a estrada e o gadinho que caminhava à sua frente; junto com o cheiro veio o sabor de seus lábios...

Turíbio e Crispinzinho alcançaram Zé Maria na entrada de Mário Campos.  Ficaram a uns trinta metros, ouvindo-o cantar.

“Espera um pouco, rei Dom Jorge,
enquanto vou ao sobrado,
Buscar um cálice de vinho que pra ti tenho guardado.”

− Pensando na Similhana, crioulo?

Zé Maria emudeceu.

− Pensar nela já é uma ofensa, seu crioulo imundo.

− Calma, Turíbio, ele tava só cantando.

− Cantando a modinha dela.

− Calma, Turíbio, tudo tem seu tempo e sua hora.

Turíbio esporeou o cavalo e desviou o gado para a estrada de Brumadinho.

− Mas nós não vamos pro matadouro da Colônia?

− Resolvemos dar uma passadinha na casa da tia Maria – respondeu Crispinzinho.

− Mas tá ficando escuro.

− E daí? O Manoel Leproso espera.

Zé Maria gelou. Os irmãos de Similhana tinham descoberto. Iam matá-lo. Eles não trouxeram arma de fogo, só as facas. Ele também tinha a dele. Eles eram dois, mas ele era mais forte e mais acostumado com briga de faca.

Lembrou-se de Paracatu, da briga e da fuga inevitável. Tinha sido uma briga à toa. Sem motivo, cachaçada.  Se arrependimento matasse... Nunca mais pôs pinga na boca. Veio para as beiradas do Paraopeba para começar vida nova. No Engenho Seco encontrou trabalho. O velho Crispim era um tirano, mas sabia dar valor a quem trabalhasse.  Mas o que ele jamais imaginou encontrar na vida, ele encontrou no Engenho Seco: o amor de Similhana. Se ele matasse um de seus irmãos a perderia para sempre. Perderia sua razão de viver. Se fugisse ficaria sem ela do mesmo jeito.

Quando as últimas casas de Mario Campos ficaram para trás, estava quase escuro. Iam em silêncio, margeando a estrada de ferro e ouvindo o rumor das águas do Paraopeba que fica logo abaixo.Turíbio ia à frente das reses, de candeeiro, Crispinzinho fechava o cortejo.  Zé Maria viu Turíbio pegar uma acha de sucupira numa pilha de lenha à beira da estrada e vir em sua direção a galope. Conseguiu evitar a porretada se abaixando, mas Crispinzinho o derrubou do cavalo com um soco nas costelas. Os dois o cercaram, empunhando as facas.

− Só queremos saber se você pegou a Similhana à força ou se ela deixou.

− Que diferença faz, sô Turíbio?

− Muita. Ou morre um, ou morre dois.

− Conhece sua irmã, ela nunca faria isso.

− Prova, então.

Zé Maria tirou a camisa e mostrou as costas lanhadas.

− Isso tá parecendo arame farpado.

− É unha, Turíbio – disse Crispinzinho, puxando violentamente Zé Maria pelo ombro, fazendo-o girar e enterrando a faca na barriga do negro. Turíbio golpeou Zé Maria no vão do pescoço.

Zé Maria não esboçou um único gesto de defesa, sua faca continuava na bainha; caiu de joelhos e depois de um breve instante emborcou com o rosto na terra.

 

O fundo escuro do rio Paraopeba é cheio de sumidouros de onde nada retorna.